domingo, 13 de agosto de 2017

Diário de maratonista (Reflexões pós corrida 19º de 20)


“Se eu fosse planta gostaria de um meio favorável que me fizesse crescer... Mas sou homem. Prefiro um meio adverso que me desafie a crescer” - Professor Hermógenes (precursor do hatha yoga no Brasil)

Aqueles momentos que sucedem uma maratona são inconfundíveis. A alegria e a satisfação estão estampadas no rosto de todos que concluem esse desafio, assim como a expressão de dor e desconforto físico. Após cruzar a linha de chegada da SP City Marathon permaneci alguns segundos, imóvel, apreciando os colegas corredores no pórtico de chegada. Alguns chegaram dançando, outros socando o ar como se tivessem feito o gol do campeonato. Alguns outros chegam de mãos dadas com crianças que, provavelmente, eram seus filhos. Outros chegam lentamente, cruzam a linha de chegada e aparentam estar desorientados ou confusos, tamanho foi o esforço investido para concluir os 42 km. Maratona é isso.
Enquanto tento achar uma muda de roupas seca na mochila, sentado na armação da Arena da prova, reflito sobre o que aconteceu nas últimas quatro horas, enquanto tento me acostumar às dores que começam tomar conta dos meus músculos. E as dores aumentam na medida em que o corpo esfria. Nada sério, aparentemente, apenas acúmulo de lactato. Mesmo assim, tenho dificuldades de tirar os tênis, as meias e os pernitos. Falta força para realizar os movimentos mais simples. Olho ao redor e vejo outros corredores chegando, tentando achar um espaço pra sentar e as dificuldades são as mesmas. Idêntico é o sorriso de todos quando os olhares se cruzam ou somos surpreendidos fazendo uma força descomunal para desamarrar um cadarço.
Tento localizar o ônibus da organização que levaria os corredores da Arena da Chegada, no Jockey Club, até o local da largada, na Praça Charles Miller. Um serviço indispensável, na medida em que localizar um táxi ou utilizar transporte público num local como o Jockey, em dia de evento, seria uma tarefa bem difícil. Felizmente, o caminho até os ônibus estava bem sinalizado e em poucos minutos cheguei ao veículo que já estava estacionado e pronto para partir. Subi com dificuldades os dois degraus que davam acesso ao ônibus, sob o olhar irônico do motorista, como quem pergunta: - Por que você faz isso?
Okay, eu até entenderia a pergunta do motorista, afinal, já fui questionado sobre isso em outras oportunidades. Normalmente, respondo com um “porque eu gosto”, ou “porque faz bem”, ou ainda, um “porque eu gosto de desafiar os limites”. Todas essas respostas estariam corretas para uma corrida de 5, 10km ou para um treino no parque, mas após passar quatro horas sob intenso stress físico e mental e completar um dos maiores desafios que um ser humano pode suportar, acredito que eu deva, a mim mesmo, uma resposta um pouco mais elaborada.
Eu não tenho certeza, mas acho que todos os grandes inventos da história da Humanidade, seja a roda, o avião ou a internet  foram motivados pelo desejo de conforto do ser humano. Normal. Como todos os mamíferos, passamos a maior parte de nossa vida em repouso, descansando. Seja no conforto de nossas casas, ou no conforto de nossos veículos, ou ainda, no conforto proporcionado pelos shoppings centers. E a corrida, meus amigos, não tem nada de confortável. Correr é difícil, é cansativo, algumas vezes é dolorido, aumenta a frequência cardíaca e a sudorese. Enfim, correr é uma atividade que vai na contramão da evolução da humana. É um hábito que nos remete à origem de nossa espécie, quando a vida não tinha nada de confortável, mas ao mesmo tempo era bem mais simples. A corrida é simples. Talvez isso explique o grande número de adeptos no mundo inteiro. Mas, será que é só isso?
No meu caso, a corrida ganhou um sentido especial nos últimos anos. Senti que precisava simplificar a minha vida, simplificar a forma como enxergava os problemas e, assim, visualizar as respostas aos meus questionamentos com muito mais nitidez. O simples ato de sair da cama antes do nascer do sol, calçar os tênis e correr pelas ruas e parques silenciosos, testemunhar a cidade acordando, ganhando vida permitiu isto. Porque é nesse silêncio que a minha mente realmente descansa. Se o treino é leve, até consigo pensar em algum problema que esteja me atormentando naquela semana, mas são reflexões frugais, nada demais. Se o treino é mais forte, não consigo pensar em nada que não seja o meu corpo, no treino e no esforço que eu ainda preciso fazer para completá-lo. De um jeito ou de outro, os problemas parecem bem menores após correr 10 ou 15 kms no máximo do esforço. E, assim, sinto-me energizado, pronto pra começar o dia, enfrentar os leões que me esperam na arena nossa de cada dia.
A corrida fez com que eu me conhecesse e me aceitasse melhor. Reconheço e aceito as minhas limitações, as minhas fraquezas, os meus equívocos, minhas frustrações. Mas, ao mesmo tempo a corrida não me permite acomodação, não me resigno. Treino para ser um corredor melhor e, quem sabe, uma pessoa melhor, também. Na corrida não existem máscaras, disfarces ou mentiras. Vale o que está na planilha, vale o que está no cronômetro. A corrida permitiu que eu me enxergasse como realmente sou, e não com os olhos de quem me observa de fora. E com isso, as expectativas ficaram mais realistas, mais palatáveis. Diminuiu o espaço para as frustrações, para as decepções. Já sei que não correrei os 10 km abaixo de 35 minutos. Não há porque sofrer por causa disso. 
E ser um corredor é isso. É aprender um pouco a cada dia. Utilizar o seu corpo como um veículo para esse aprendizado. Seja num treino ou numa prova aprendo um pouco sobre mim, aprendo um pouco mais sobre o ser humano, aprendo um pouco mais sobre a vida. Sabe, tenho uma gaveta cheia de medalhas outra abarrotada de camisetas de provas, mas, tenho dificuldades de apontar para uma ou outra medalha ou camiseta e descrever como foi a prova, qual a dificuldade do percurso. Passou. Está engavetado. O que fica, normalmente, são as sensações e as experiências que eu vivenciei e, hoje, refestelado nessa poltrona de ônibus, acompanhado dos colegas da corrida, a sensação é a de que, independentemente, do que ocorra nos próximos dias, meses ou anos, eu fui capaz de fazer algo especial, algo que exige esforço, concentração, comprometimento, força física e mental e venci! E, amigos, com 42 anos nas costas, é só disso que eu preciso.

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