Corro. Não sei se corro muito ou
pouco. Sei que, geralmente, corro o suficiente. É suficiente para concluir bem
uma competição. É suficiente para manter o meu corpo em atividade. E, acima de
tudo, é suficiente para manter a minha mente tranquila, silenciosa, isolada do
barulho causado pela tempestade de informações, imagens e preocupações do dia a
dia. Essa calmaria proporcionada pela corrida tem início com a respiração, que é
constante, vigorosa, enérgica, mas, sem ser forçada. Prossegue com a percepção
de meu corpo, da mecânica do movimento, das reações de meus membros após cada
passada. Passa pela minha consciência acerca do espaço, o terreno, as
distâncias, os odores, as inclinações, os obstáculos, os perigos, as condições
climáticas e termina com relação de tudo isso com o tempo, com o ritmo e a
frequência cardíaca.
Fonte: Portal Despertar Coletivo - www.despertarcoletivo.com |
Parece muita informação, mas, não
é. Com a prática constante da corrida, todos estes elementos fluem de forma
ordenada, de modo que, durante o exercício, eu sequer penso a respeito.
Simplesmente reajo, adapto-me e modifico os parâmetros, de acordo com o tempo,
o espaço, o clima ou às respostas de meu corpo. A corrida, em suma, vai muito
além dos padrões estabelecidos, das técnicas de treinamento, das planilhas ou
manuais. A corrida, amigos, precisa ser sentida, vivida e vivenciada. As
planilhas, cronogramas de treinamento e os treinos acompanhados de treinador
são excelentes ferramentas. Não me entendam mal. Mas, são apenas ferramentas. O
objeto do exercício é o corpo. E o corpo humano, embora seja uma máquina
perfeita, não é exata. O que serve para um atleta não serve, necessariamente,
para todos. Mesmo um treino pensado pelo treinador para um atleta em
específico, pode sofrer adaptações. O meu corpo, hoje, não é necessariamente, o
mesmo de ontem, quiçá de amanhã. Tem dia que o corpo não responde bem ao
estímulo, fica pesado, travado. E, em outros dias, o nosso corpo parece flutuar
na pista. Acontece. Nesse caso, paciência é a chave para a longevidade nesse
esporte.
Às vezes corro com música nos
fones de ouvido. Outras vezes opto por correr em silêncio. Algumas vezes corro
acompanhado, mas, mesmo acompanhado, considero a corrida um esporte solitário
por excelência. Cada um tem seu próprio ritmo, cada corpo reage de uma maneira
única ao esforço do exercício. Correr devagar ou rápido demais para acompanhar
um colega, pode alterar a mecânica de corrida e impor um esforço ao qual não
estamos acostumados, tornando a corrida menos prazerosa. Além disso, acredito
que somente a corrida solitária permite o autoconhecimento, a consciência de
nossa identidade como corredores. Saber lidar com esse silêncio,
mesmo que momentâneo, é o que diferencia um corredor de longas distâncias daquele
corredor que pratica a atividade apenas para manter o condicionamento físico. Para
correr por horas e horas, percorrendo dezenas de quilômetros, é preciso estar
com a mente preparada para longos períodos de isolamento. Os medos, as
angústias, as dores devem ser enfrentadas individualmente. Somente o corredor,
e ninguém mais, saberá a hora exata de superar as dores e seguir em frente ou
sentar no meio fio e aguardar o resgate da organização da prova.
Fonte: www.happierdaily.com |
Lembro aqui de minha primeira
maratona (4.195 metros), em Porto Alegre, no ano de 2007. Do quilometro 28 ao
36 experimentei esse isolamento. Mais de quarenta minutos com dores físicas
lancinantes, sem público para incentivar e os poucos corredores que encontrei
pelo percurso, estavam em condições físicas muito piores, alguns já padecendo
de câimbras. Nunca tinha desistido de
uma prova. Acho que tive medo do que poderia ocorrer caso o fizesse naquele
dia. Não sabia se as dores piorariam, se teria alguém para me resgatar do
percurso, se teria meios para voltar ao hotel. Enfim, sabia que estava
encrencado naquele momento. Preocupava-me o fracasso e a justificativa que eu
daria para as pessoas que acompanharam toda a minha preparação. A dor beirava o
insuportável. As perguntas começavam a pipocar em minha mente. Foi excesso de
treino? Falta de treino? Será que me alonguei pouco? Num determinado momento,
simplesmente parei de pensar. Não adiantaria de nada. Eu sabia que estava treinado. Se
estava tão sofrido era porque estava fazendo algo de errado. Resolvi me
concentrar nos movimentos de meu corpo, na mecânica, nas passadas. Os quilômetros passavam devagar. Então, estabeleci
pequenos objetivos, como tentar correr até o
próximo poste e o seguinte, assim por diante. A dor diminuiu e consegui
concluir a prova. O
alívio físico foi alcançado a partir do alívio mental. Tranquilizar a mente,
reduzir a quantidade de pensamentos, preocupações e imagens fizeram a diferença
na hora de suportar aqueles últimos quilômetros.
Nos últimos anos, tenho praticado
a meditação, regularmente. Não esperem que eu seja aquele indivíduo que passa
horas sentado, com as pernas cruzadas, olhando para o vazio e que quando abre a
boca para falar transbordam rios de sabedoria e tranquilidade. Nada disso.
Desfruto de alguns poucos minutos diários para a prática da meditação. Cinco a
dez minutos, no máximo. Não entoo mantras, dedico-me apenas à observação.
Observo o meu corpo, a minha respiração e os meus pensamentos. Ou então,
visualizo imagens capazes de propiciar contentamento à minha mente, seja a
imagem de uma praia paradisíaca numa manhã de verão ou, quem sabe, a imagem da
linha de chegada na maratona que correrei esse ano. Vivemos numa sociedade que exige que fiquemos contatados, com amigos, colegas, familiares da hora em que despertamos até a hora de dormir. Estamos sempre online, aguardando algum chamado, alguma informação, alguma resposta. Sair dessa teia a qual estamos conectados e ficarmos realmente off, mesmo que por apenas alguns minutos, é uma experiência que vale ser vivenciada.
Abraços, bons treinos e, quem sabe, boa meditação.
Playlist:
A primeira sugestão da semana é o
álbum “The Will to Live”, do Ben Harper, do ano de 1997. Para quem não gosta de
nenhum tipo de bate estaca embalando a corrida, esse álbum do Ben Harper,
talvez, seja a pedida ideal para aquele treino longo de final de semana. Um
álbum que ganha pontos na minha avaliação pelo bom gosto da produção. Destaques
para as faixas “Glory and Consequence”, “Roses From My Friends” e, claro, a
versão ao vivo do clássico “Sexual Healing”.
A segunda e última sugestão da
semana é o álbum “Pânico em SP”,
da banda Inocentes, lançado no ano de 1986.
Esse é o álbum pra ouvir antes, durante ou depois daquele treino intervalado,
de tiros. O álbum mereceria uma audição por todos aqueles que gostam de um rock
cru, sem firula e cantado em português. Punk rock executado com muita
competência. Destaque para as faixas “Rotina”, “Expresso Oriente” e “Pânico em
SP”. E o que é melhor, o álbum completo tem aproximadamente 20 minutos, ou
seja, o tempo exato de sessão de tiros de velocidade.
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