Quando você acumula uma certa
experiência de corrida, o tempo pode ser calculado somente com a percepção
do próprio esforço. A respiração, a frequência das passadas, o movimento dos braços são os indicadores. Várias vezes saí de casa para correr na rua sem cronômetro, mas,
mesmo assim, tinha noção exata de quanto tempo tinha corrido, baseado somente
no esforço durante o exercício. É possível até medir com certa precisão os
quilômetros percorridos. O corpo e a mente conseguem construir um GPS
eficientíssimo e o que é melhor. Corrida exige atenção e observação dos sinais que o corpo emite.
Pois bem, esse GPS humano
funciona muito bem na rua, na cidade, no ambiente urbano. Na trilha, deu pane
geral. Nem meu corpo e nem minha mente conseguiam dar pistas sobre o tempo e
espaço. Aliás, na trilha, o tempo passa muito, muito devagar. Pequenos trechos
geralmente são percorridos em muito tempo. Não sei bem o porquê. Preciso praticar mais essa modalidade pra aprender esses detalhes. Acredito que,
na corrida em trilha o corredor fica muito mais focado no terreno, no ambiente ao redor, nos riscos
de cada aclive, declive, charcos, obstáculos naturais. As passadas não podem
ser tão largas, vencemos pequenos obstáculos e não quilômetros como nas
corridas de rua.
Dizem que a corrida é um esporte
solitário. Concordo! Mas, ainda assim, numa corrida de rua, a multidão, sejam
de corredores ou de espectadores, conseguem construir
um ambiente festivo. Vide a São Silvestre, a Meia do Rio, ou ainda uma Maratona
como a de Nova Iorque, por exemplo. A corrida em trilha é um esporte solitário.
Ponto. Durante vários trechos dessa experiência no XTERRA tive a impressão de
ser o único competidor, um único louco de um bando que me deixou a própria
sorte. Nada de atletas, nada de público. Apenas um corredor e a natureza ao
redor. Raros foram os momentos compartilhados com outros corredores, nem que
fosse uma piada ou palavra de incentivo. Me senti num daqueles programas de
sobrevivência na selva que passam aos domingos, no Discovery Channel.
Solidão total. Quando encontrava
outro corredor no caminho, nada de papo furado, concentração total no terreno.
Até mesmo os aparelhos sonoros foram deixados de lado. Deixei o meu MP3 em São
Paulo. O “batidão” que impulsiona o corredor é
a trilha sonora da mata; os passarinhos, as folhas secas, os zumbidos
dos mosquitos, a correnteza do rio, quebrando nas pedras e o barulho da minha
respiração, já ofegante!
Esse povo que organiza o XTERRA é
bem gozador mesmo. Acreditem que todos os anos a
organização do evento muda o
percurso da corrida! E isso, claro, não quer dizer que a corrida do próximo ano
ficará mais fácil ou mais difícil, mas, principalmente, impedem que eu ou
qualquer outro corredor virem especialistas em percurso. Acho genial! Uma das
maiores queixas dos corredores de rua de São Paulo é a carência de novos
percursos. A gente sempre corre onde treina e treina no percurso
das corridas, o que, com o passar do tempo, vai ficando bem chato, maçante. O
XTERRA é uma surpresa até para os corredores mais experientes;
Debutei num evento que teve
praticamente de tudo. A prova percorreu todos os tipos de terreno, até mesmo água.
Isso mesmo. Os atletas tiveram que a travessar um rio, com a ajuda de uma
corda. Momento tenso da competição. Cansaço, água e pedras escorregadias nunca
formam uma combinação muito boa. Atravessei com certa agilidade, mas receoso de
um tombo nas pedras que, àquela altura, além de machucar o corpo podia abalar a
minha confiança para o restante de uma prova que estava apenas na metade.
Após o rio, encaramos um trecho duríssimo no
meio da mata, com subidas íngremes, que castigaram as pernas. O calor da manhã,
a mata fechada, a irregularidade do
terreno, essa estufa chamada Mata Atlântica que impede a evaporação do suor, a
desorientação. Sem saber o quanto já tinha corrido e quanto faltava concluir,
ante a ausência de marcações, a mente fica confusa. Por duas vezes parei no meio do
caminho receoso de estar perdido. Fui “despertado” por outros corredores que se
aproximam, ofegantes, barulhentos. Não, não estava perdido! Segue a trilha!
Na saída da mata, mais uma subida
em estrada de terra. Subo caminhando desta vez. Aprendi a lição? Não. Caminhar
é a única opção. As pernas não aguentariam o desgaste de uma corrida, mesmo um
trote poderia lesionar meus músculos, que foram bastante exigidos. Essa
primeira subida é acompanhada por outras duas, tão íngremes quanto a primeira.
Sofrimento total. Não sinto dores, apenas a incômoda sensação de estar no
limite de minhas forças. E o pior; sem saber quanto falta para terminar. As
subidas, enfim, parecem ter chegado ao fim, com uma descida igualmente íngreme
de terra batida. Aproveito pra correr um pouco, soltar os braços, respirar.
Ganho velocidade na descida. Diminuo quando vejo, mais à frente, uma corredora
cair e descer, rolando, ladeira abaixo. Parece que só machucou as mãos que
amorteceram a queda. Levanta, sacode a poeira e continua correndo.
Emendamos mais uma sequência de
subidas e descidas no percurso, sendo que as descidas pareciam bem mais curtas
e menos íngremes que as subidas. Avisto uma placa no chão, sinalizando “14km”.
Dois terços da prova já tinham virado poeira. Hora de colocar a cabeça no
lugar, concentrar, focar na chegada. Apenas mais 8km. Chego ao posto de
abastecimento da organização. Água gelada, isotônico e uma das mais belas
vistas do litoral de Ilhabela. Ninguém está com pressa. Hora de apreciar a
vista, tirar algumas fotografias, hidratar, comer, relaxar, socializar com os
outros corredores, enfim, recuperar o corpo e a mente para o final da prova.
Aproximadamente 7 km. Olho no cronômetro e já passavam de 2 horas de prova.
Talvez, concluísse com 2h40min, talvez após 3 horas. Sei lá, prometi a mim
mesmo não olhar mais o cronômetro. Não importa mais. A única marca que importa
é a linha de chegada.
Segundo o rapaz da organização
disse, tínhamos que fazer mais 02 subidas em terra batida e que correspondia ao trecho mais elevado da trilha e, dali pra frente,
eram mais de 6km de descida até a praia. Subimos em marcha, como num pelotão de
soldados cansados de guerra. Fora da mata, dos mosquitos, galhos e espinhos,
resolvi até tirar a camiseta molhada. Naquele momento, refrescou a pele como se
eu tivesse vestindo um casaco de lã. Assim que o terreno aplanou, voltamos a
correr. O percurso agora era um ladeirão de paralelepípedos, em ruas estreitas.
A vontade de completar a prova era maior que o medo de cair naquela descida.
Joelhos exigidos ao máximo. Chegamos ao centro da cidade. Sabadão ensolarado,
bastante gente nas ruas, carros, bicicletas, bye bye solidão.
Enfim, de volta ao nível do mar,
de volta à praia. Não sei exatamente quantos quilômetros faltam pra chegada,
mas, nesse momento, o número pouco importa. A única coisa que importa é cruzar
a linha de chegada. Correr na orla da praia, considerando todo o perrengue do
percurso, foi um alívio. Pena que o cansaço não me permitiu curtir mais a
beleza do lugar, aproveitar mais aquele momento especial, entender o quão grandioso tinha sido aquela jornada e a sua superação. Estava cansado demais pra racionalizar. Como um último
desafio, o trecho final do percurso foi na areia fofa da praia. É preciso ter
tornozelos de aço, meus amigos, pra aguentar essa raspinha de prova. O volume
da música na arena começa a aumentar. Começo a enxergar lá na frente uma
tendinha, que pode ser o pórtico de chegada. É o pórtico de chegada, com um
tapete de cronometragem que faço questão de pisar com força, como que cravando
uma bandeira. O símbolo dos desbravadores. Vim, vi e venci. O XTerra Ilhabela
2016 virou história. Bota essa medalha no peito, garoto!
Entrevista pós prova, hidratação, alimentação e descanso (realizada por um repórter que não quis ser
identificado nesse blog):
P: Qual o momento mais sofrido da prova?
R: Ora, meu caro, como sempre, o
momento mais sofrido é acordar de manhã cedinho, calçar os tênis e sair de casa pra correr.
P: E as dores? Tem alguma incomodando?
R: Em mim? Não, nenhuma. Vai
doer amanhã naqueles colegas que não conseguiram completar a prova.
P: Quais os planos para o futuro?
R: Fazer um "treininho" leve
amanhã pra recuperar...
P: E a sua participação no XTerra?
R: Foi ótima, mas, no ano que
vem vai ser bem melhor, né!
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