"Coutinho não é nome de jogador de futebol!"
"Amigos, o jogo Santos x Vasco, que deu o título ao Santos, comporta vários
personagens da semana. Antes de mais nada, teríamos a diretoria do clube da
Cruz de Malta. E que fez ela, a diretoria do Vasco da Gama, para que assim eu a
destaque, em alto relevo? Fez apenas isto: atirou às feras um time de reservas,
remeteu o time de reservas para o matadouro do Pacaembu. Qualquer
paralelepípedo previra o que, fatalmente, aconteceu. O Santos deu um passeio,
um baile, um banho de futebol. Imagino que, a essas horas, nas prateleiras de
São Januário, as taças, os troféus inumeráveis hão de estar chocalhando de
humilhação. Vamos e venhamos: a Cruz de Malta não merecia tão horroroso vexame.
E o velho almirante, o próprio do Caminho das Índias, se vivo fosse, estaria
sentado num meio-fio, a chorar lágrimas de esguicho. Glória, pois, ao imortal
Barbosa. Debaixo dos três paus, ele foi algo como uma rocha oceânica, como uma
bastilha invicta. Amigos, sua velhice não é velhice, mas uma soberba, uma
salubérrima eternidade. E o falso velhinho impediu que a goleada fosse mais
abundante, mais torrencial.
Mas eu não farei da diretoria cruz-maltina o meu personagem da semana.
Não. Repito: o meu personagem da semana há de ser um santista. E penso no
ataque. Sim, amigos: o Santos não é como os outros. Qualquer time é um
conjunto, que inclui o goleiro, a zaga, os médios e os cinco dianteiros. No
Santos, não. No Santos tudo é ataque e só ataque. A defesa pode falhar, o
goleiro pode papar frangos homéricos, frangos camonianos. Mas desde que o
ataque esteja em estado de graça, de plenitude, não há o que temer. A gente não
sabe como se chama o quíper, a gente não se lembra como se chama o zagueiro. O
que ninguém esquece é a linha, com suas penetrações fulgurantes, suas tramas
geniais. Basta dizer o seguinte: o Santos tem um Pelé. Eu sei que Pelé, contra
os ingleses, jogou pedrinhas. Mas é Pelé mesmo jogando mal, e vou mais além:
Pelé, mesmo em casa, mesmo lendo gibi, já infunde um pânico religioso. E, além
do Pelé, o ataque do Santos tem o Coutinho. Lembro-me que ao ouvir falar em
Coutinho, pela primeira vez, tomei um susto. Comentei, então, de mim para mim:
“Coutinho não é nome de jogador de futebol!” De fato, o nome influi muito para
o êxito ou para o infortúnio. Napoleão, se tivesse outro nome, já seria muito
menos napoleônico. Outro exemplo: por que é que Domingos da Guia foi o que foi?
Porque esse “da Guia” dava-lhe um halo de fidalgo espanhol, italiano, sei lá.
Ainda hoje, o sujeito treme quando ouve falar em “da Guia”. Mas o Coutinho tem
contra si o nome. O sujeito que se chama apenas Coutinho dá logo a ideia de pai
de família, de Aldeia Campista, Vila Isabel, Engenho Novo, com oito filhos nas
costas e a simpatia pungente de um barnabé. Pois bem. Apesar de chamar-se
liricamente Coutinho, o meu personagem da semana é um monstro, um Drácula, um
“Vampiro da Noite” de futebol. Eu não sei se me entendem a imagem. Mas o
Coutinho não sugere outra coisa, senão o sujeito que come a bola de uma
maneira, por assim dizer, material, física. Ao sair de campo, parece-lhe
escorrer dos lábios o sangue, ainda vivo, ainda efervescente da bola
recém-vampirizada,
As inteligências simples, bovinas e, atrevo-me mesmo a dizê-lo, vacuns,
hão de rosnar: “Literatura!” Parece, amigos, parece! Mas o povo, com o seu
instinto agudo, sua vidência terrível, reconhece e aponta os jogadores que
“comem” a bola, como se a estraçalhassem nos dentes, fazendo esguichar o sangue
da redonda. E se, na verdade, existem os “tarados” da pelota, Pelé ou Coutinho
há de ser um deles. Com o doce e inofensivo nome de Coutinho, o meu personagem
fez, ontem, contra o Vasco, barbaridades sem conta. A um confrade que veio, de
avião, do Pacaembu, eu perguntei: “Que tal o Coutinho?” O colega baixa a voz:
“Bárbaro!” Insisti: “E o Pelé?”
Resposta: “Bárbaro!” Fui adiante: “E Dorval? Pepe?” A tudo, o sujeito
respondia, de olho rútilo: “Bárbaro!” Então, eu me convenci, de vez, que o
ataque do Santos se constitui, realmente, de sujeitos que não respeitam e, pelo
contrário, brutalizam a bola, e cravam, nela, os seus caninos de vampiro. Só o
Coutinho fez, contra a velhice genial e quase imbatível de Barbosa, dois gols.
Dizem que, nas bolas altas, ele se tornava elástico, acrobático, alado. O seu
salto realmente era um voo.
Guardem esse nome de pai de família e de barnabé: Coutinho. Ou muito me
engano ou estará ele no escrete brasileiro que, se Deus quiser, vai ser
bicampeão no Mundial do Chile."
Crônica de Nelson Rodrigues, revista Manchete Esportiva em 23/05/1959.
Site: Ministério do Esporte.
Jogo que deu o título do Torneio Rio-São Paulo para o Santos. Coutinho, principal figura da partida, tinha então 15 anos na época. Ficha técnica:
Santos 3 X 0 Vasco
Data: 17/05/1959
Local: Pacaembu
Árbitro: Frederico Lopes
Renda: Cr$ 905.695,00
Público estimado: 21.000 pagantes
Santos - Laercio, Getúlio, Mourão, Ramiro, Álvaro, Zito
(Fiote),
Dorval, Jair, Coutinho, Pelé e Pepe
Técnico: Lula
Vasco - Barbosa, Viana, Coronel, Dario, Russo, Laerte,
Sabará,
Robson, Zé Henrique (Cabrita), Rubens e Roberto Peniche
(Osvaldo)
Técnico : Gradim
Gols: Coutinho (2) e Pelé
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